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Wednesday, May 16, 2012

A Bênção de Nada Possuir


Aiden Tozer

Bem-aventurado os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus.—Mateus 5:3

Antes de criar o homem, Deus preparou para ele um mundo repleto de elementos úteis para sustentá-lo, e agradáveis para ele desfrutar. No relato em Gênesis, esses elementos são chamados apenas de “coisas”.[1] Foram criadas para o homem usar, mas para estarem à parte, servindo ao homem. No fundo do coração do ser humano existia um santuário onde apenas Deus era digno de entrar. Ele tinha Deus no seu íntimo e, no mundo onde vivia milhares de dádivas que Ele lhe concedera.

Mas o pecado introduziu complicações, transformando essas dádivas em uma fonte potencial de ruína para a alma.

Nossos problemas começaram quando Deus foi expulso do santuário central e as “coisas” entraram e dominaram o coração humano. As pessoas hoje, por natureza, não têm paz no coração, porque Deus perdeu o Seu trono, e no crepúsculo moral habitam agora usurpadores agressivos e rebeldes, competindo pelo primeiro lugar no trono.

Não se trata de uma simples metáfora, mas uma análise precisa do nosso verdadeiro problema espiritual. Existe no coração humano uma raiz fibrosa e rígida de degeneração cuja natureza é possuir, sempre possuir. Ela ambiciona "coisas" com um apetite voraz, com uma paixão profunda.

O pronome "meu" parece inócuo na palavra impressa, mas o seu uso constante e universal é significativo. As raízes de nossos corações cresceram na direção de coisas, e não ousamos arrancar uma pequena raiz que seja, com medo de “morrer”. As coisas se tornaram fundamentais na nossa vida, um desenvolvimento inicialmente não previsto. As dádivas, os dons de Deus, assumiram o Seu lugar, e todo o curso da natureza foi afetado por essa monstruosa substituição.

O nosso Senhor mencionou essa tirania das coisas quando disse aos Seus discípulos: "Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á: e quem perder sua vida por minha causa a achará"[2].

Se dividirmos esta verdade para um melhor entendimento, poderíamos dizer que existe dentro de cada um de nós um inimigo que toleramos por nossa conta e risco. Jesus chamou isso de "vida" e "ego", ou como se diz, viver para si. A principal característica é a possessividade, bem definida pelas palavras "ganho" e "lucro". Permitir a presença desse inimigo causa a perda de tudo. Repudiá-lo e abrir mão de tudo por amor a Cristo significa não perder nada no final, mas conservar tudo para a vida eterna. E possivelmente também nos oferece uma dica da única maneira eficaz de destruir esse inimigo: a Cruz. "Tome a sua cruz e siga-me."

O caminho para um conhecimento mais profundo de Deus é através dos vales solitários da insuficiência da alma humana e rejeição de todas as coisas. Os bem-aventurados que possuem o Reino são os que repudiaram as coisas externas e desarraigaram de seus corações todo o sentido de posse. Estes são os "pobres de espírito." Estes pobres bem-aventurados não são mais escravos da tirania das coisas. Eles quebraram o jugo do opressor, não pela luta, mas por meio da rendição. Embora livres de todo sentimento de posse, ainda possuem todas as coisas. "Deles é o reino dos céus."

Quero exortá-los a levar isto a sério. Não é para ser entendido como mero ensino da Bíblia a ser guardado na mente juntamente com uma quantidade enorme e inerte de outras doutrinas. É um poste no caminho indicando pastos mais verdes, um caminho talhado nas íngremes encostas do monte de Deus. Se desejamos continuar nesta busca pelo sagrado, não nos atrevemos a tentar contornar ou passar de largo. Temos de subir um passo de cada vez. E recusar um passo liquida o progresso.

Como frequentemente acontece, este princípio da vida espiritual que vemos no Novo Testamento é melhor ilustrado no Antigo Testamento. Na história de Abraão e Isaque temos um quadro dramático da vida de renúncia, bem como um excelente comentário sobre a primeira bem-aventurança.

Quando Isaque nasceu, Abraão já era velho, com idade na realidade para ser avô da criança que tanto amava e que se tornou a alegria do seu coração. [3] A partir do momento em que se inclinou para pegar nos braços, um pouco sem jeito, aquele toquinho de gente, Abraão se tornou um escravo do amor pelo seu filho. É fácil entender por que Deus Se desdobrou para comentar sobre a força desse afeto. -- O bebê representava tudo que o pai tinha de sagrado no seu coração: as promessas de Deus, as alianças, as esperanças dos anos e o tão longo sonho messiânico. A criança foi crescendo até se tornar um jovem rapaz, e nesse processo o coração do velho homem foi se ligando mais e mais à vida do filho, até o relacionamento chegar a um ponto delicado, quando Deus entrou em cena para salvar o pai e o filho das consequências de um amor impuro.

"Toma teu filho", disse Deus a Abraão, "o teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá, e oferece-o ali em holocausto sobre um dos montes que eu te direi.”[4]O escritor das sagradas letras nos poupa uma visão detalhada da angústia vivenciada naquela noite nas encostas perto de Berseba, quando o idoso teve uma conversa franca com Deus. Mas uma boa e reverente imaginação poderá ver, surpresa, o homem inclinado e a luta agoniante debaixo do céu estrelado. Possivelmente, nenhum outro ser humano sentiu essa dor mortal até que alguém maior que Abraão lutou no Jardim do Getsêmani. Se ele pudesse morrer, teria sido mil vezes mais fácil, porque já estava velho, e morrer não seria uma grande provação para quem já tinha caminhado com Deus por tantos anos. Além disso, teria sido um prazer contemplar, com a vista já fraca, a doce figura do seu forte filho, que daria continuidade à linhagem de Abraão e cumpriria na sua vida as promessas feitas por Deus muito tempo antes, em Ur dos caldeus. [5]

Como ele poderia matar o rapaz?! Mesmo que o seu coração ferido, que protestava contra as instruções que recebera, consentisse com esse ato, como poderia ele conciliar o ato com a promessa: "Em Isaque será a tua descendência"?[6] Esta foi uma provação muito grande para Abraão, ele passou pelo fogo, mas não falhou. Enquanto as estrelas ainda reluziam sobre a tenda onde Isaque dormia, e muito antes de amanhecer o dia cinzento no oriente, o velho homem de Deus já tinha tomado a sua decisão. Ele iria oferecer seu filho como Deus o tinha instruído, e então confiaria em Deus para ressuscitá-lo. Isto, diz o autor da epístola aos Hebreus, foi a solução encontrada por seu coração dolorido no meio da noite escura, e ele se levantou "no início da manhã" para realizar o plano.[7] É lindo ver que, apesar de não ter entendido direito o método de Deus, percebera corretamente o segredo do Seu grande coração. E a solução concorda bem com o versículo no Novo Testamento, "Quem perder a vida por amor de mim a achará."

Deus deixou o sofrido Abraão prosseguir com o plano até o ponto em que Ele sabia que não haveria saída, e então o proibiu de tocar o rapaz. Para o patriarca Ele diz praticamente, “Está tudo bem. Eu nunca quis que você realmente matasse o rapaz, apenas que o tirasse do santuário do seu coração para que Eu possa reinar inconteste no seu íntimo. ... Agora pode ficar com o rapaz, ele está são e salvo Leve-o de volta para a sua tenda. Agora Eu sei que temes a Deus, vendo que não me negaste o teu filho, teu único filho."[8]

Então o céu se abriu e uma voz foi ouvida dizendo-lhe: "Por mim mesmo jurei, diz o Senhor, pois que fizeste isto, e não me negaste o teu filho, teu único filho, que na bênção te abençoarei, e multiplicarei a tua descendência como as estrelas do céu e como a areia que está na praia do mar, e a tua descendência possuirá a porta dos teus inimigos, e na tua descendência todas as nações da terra serão abençoadas, porquanto obedeceste à minha voz".[9]

O velho homem de Deus levantou a cabeça para responder à Voz, e ficou ali no monte forte e puro e grandioso, um homem marcado pelo Senhor para um tratamento especial, um amigo do Altíssimo. Agora ele era um homem totalmente entregue e obediente, que nada possuía. Ele se concentrou completamente no seu querido filho, e Deus lhe tirara isso. Deus poderia ter começado às margens da vida de Abraão e trabalhado para dentro, para o centro, mas escolheu ir direto ao assunto e resolver tudo por meio de uma separação. Dessa maneira Deus economizou meios e tempo. Doeu demais, mas foi eficaz.

Eu disse que Abraão não possuía nada. No entanto, este pobre não era um homem rico? Tudo o que ele tinha possuído antes ainda lhe pertencia: ovelhas, camelos, rebanhos e bens de todo o tipo. Ele tinha também sua esposa e seus amigos, e o melhor de tudo é que tinha seu filho Isaque em segurança ao seu lado. Ele tinha tudo, mas não possuía nada. Esse é o segredo espiritual. Essa é a doce teologia do coração, que só se aprende na escola da renúncia.

Depois dessa experiência amarga e bem-aventurada, Eu acho que a palavra "meu" nunca mais teve o mesmo significado para Abraão. O sentimento de posse havia desaparecido do seu coração. As coisas haviam sido expulsas para sempre e se tornaram externas ao homem. O seu íntimo estava livre delas. O mundo dizia: "Abraão é rico", mas o velho patriarca apenas sorria, pois não podia lhes explicar. Mas sabia que nada possuía, que seus verdadeiros tesouros eram internos e eternos.

... Muitas vezes o que nos impede de abrir mão dos nossos tesouros e entregá-los ao Senhor é o temor pela sua segurança, especialmente quando esses tesouros são parentes e amigos amados. Mas não precisamos temer. O nosso Senhor não veio para destruir, mas para salvar. Tudo que Lhe entregamos está seguro, e se não for assim não há segurança.

Nossos dons e talentos também devem ser entregues a Deus. Devem ser reconhecidos pelo que são, um empréstimo, e nunca devem ser considerados nossos de maneira alguma. Não temos o direito de reivindicar habilidades especiais, assim como não podemos pedir para ter olhos azuis ou músculos fortes. "Pois quem torna você diferente de qualquer outra pessoa? E que tens tu que não tenhas recebido?"[10]

O cristão que está vivo o suficiente para se conhecer o mínimo que seja vai reconhecer os sintomas dessa doença da posse e sofrer ao encontrá-los em seu próprio coração. Se o seu anelo por Deus for forte o suficiente, ele vai querer fazer algo sobre o assunto. Mas o quê?

Antes de mais nada, deve repudiar toda defesa e não tentar se justificar para si mesmo ou para o Senhor. Quem se defende a si mesmo terá a si mesmo por sua defesa, nenhum outro. Mas compareça sem defesa diante do Senhor e terá por defensor não menos do que o próprio Deus. O cristão que busca a Deus deve pisotear todo truque malicioso do seu coração dissimulado e insistir em uma relação franca e aberta com o Senhor.

Em seguida, ele deve se lembrar que este é um negócio sagrado. Relações descuidadas ou ocasionais não bastam. Ele deve vir a Deus determinado a ser ouvido, insistir que Deus aceite seu tudo, que tire as coisas do seu coração para Ele reinar supremo. Talvez precise ser específico, mencionar coisas e pessoas pelo nome. Se for drástico o suficiente, pode encurtar o tempo de sua agonia de anos para minutos e entrar na boa terra muito antes de seus irmãos mais lentos que protegem demais seus sentimentos e insistem em ter cautela nas suas relações com Deus.

Não nos esqueçamos nunca que tal verdade como esta não pode ser aprendida por memorização como se aprende fatos científicos. Precisa ser vivida para podermos realmente conhecê-la. Devemos viver em nossos corações as experiências duras e amargas de Abraão se queremos conhecer a bem-aventurança que nos trazem. O nosso ego avarento e emperdernido não vai se entregar e morrer em obediência a uma ordem nossa. Ele deve ser arrancado do nosso coração como uma planta do solo, extraído em agonia e sangue como se extrai um dente. Ele deve ser expulso da nossa alma pela violência como Cristo expulsou os cambistas do Templo. E precisaremos ter uma convicção inabalável para não sucumbirmos ao seu rogo, reconhecimento que é autocomiseração, um dos pecados mais condenáveis ​​do coração humano.

Se quisermos realmente conhecer a Deus de forma mais íntima, devemos seguir pelo caminho da renúncia. E se estamos decididos a buscar a Deus, mais cedo ou mais tarde Ele vai nos trazer a este teste. Na ocasião em que passeou pela provação, Abraão não sabia se tratar de um teste, mas se ele tivesse seguido outro rumo, toda a história do Antigo Testamento teria sido diferente. Deus teria encontrado alguém para fazer o trabalho, disso não há dúvida, mas Abraão sofreria uma trágica perda. Cada um de nós vai passar por provas em um determinado momento, e talvez nem saibamos na hora em que acontece. E nesse momento não teremos dezenas de opções, apenas uma alternativa, que definirá por completo o nosso futuro.

Pai, quero Te conhecer, mas meu coração covarde tem receio de abrir mão de seus brinquedos e distrações. Eu não consigo largá-los sem sofrimento interior, e também não tento esconder de Ti o terror que sinto ao pensar em largá-los. Venho tremendo, mas venho. Por favor, desarraigue do meu coração todas essas coisas que valorizei por tanto tempo e que se tornaram parte de mim, para que Tu possas entrar e habitar ali plenamente. Em seguida, farás o lugar de Teus pés glorioso, e o meu coração não precisará da luz do sol, porque Tu serás a luz no meu íntimo, e ali não haverá trevas. Em Nome de Jesus, amém.

Do livro “The Pursuit of God” (À Procura de Deus), publicado em 1948.
Domínio público. Trechos republicados na página Âncora em abril de 2012.
Tradução Hebe Rondon Flandoli. Revisão Denise Oliveira.


[1] Gênesis 9:3.

[2] Mateus 16:24–25.

[3] Gênesis 21:1–5.

[4] Gênesis 22:2.

[5] Gênesis 12:1–3.

[6] Gênesis 21:12.

[7] Hebreus 11:17–19; Gênesis 22:3.

[8] Gênesis 22:12.

[9] Gênesis 22:16–18.

[10] 1 Coríntios 4:7; Tiago 1:17.

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